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O baú do imaginário

O baú do imaginário

19th October 2022

O que é o imaginário? É como se fosse um baú dentro de nós, onde vamos gravando, ao longo da nossa vida, referências que se mostrarão fundamentais para interpretarmos a realidade onde estamos inseridos e como, consequentemente, responderemos de volta. Por exemplo, a imagem que carregamos do que é um casal e de como ele se comporta determinará em grande medida a forma como vivemos o nosso casamento. Todos vamos adquirindo referências quanto ao papel do homem, da mulher, quanto ao que é o bem e o mal, a justiça, a verdade, a beleza, o trabalho, a amizade, a solidariedade, a coragem, etc. Tudo isto diz respeito ao imaginário e servirá de alicerce para a construção da história pessoal.


Se queremos ser mais conscientes do porque agimos como agimos em determinadas situações precisamos abrir esse baú de referências - por exemplo, eu posso estar a ter determinados problemas no meu relacionamento com o meu filho fruto do imaginário construído a partir das referências que fui adquirindo do que significa ser um pai.

Esta construção do imaginário começa na infância, onde, naturalmente, há uma atitude mais passiva e receptora das referências por parte da criança.

Este período é absolutamente fundamental para a criação das referências que nortearão a criança para o resto da sua vida - é a fase mais crítica da construção do imaginário. Nesta fase ela não tem outras referências, as primeiras a chegarem e consoante o contexto em que surjam, terão atreladas a elas memórias afetivas com efeito poderoso no imaginário que se projectará no futuro como um íman inconsciente muito poderoso.

Nesse sentido, tem de haver um trabalho intencional de pais e educadores, no que diz respeito à construção do imaginário da criança. Se não forem eles a construir, outros o farão: televisão, amigos, professores, etc - o que, numa cultura relativista, é colocar uma criança a caminhar numa falésia de olhos vendados correndo o risco de adquirir referências onde não há noções fortes e claras do que é verdadeiro, bom, justo, honesto, belo, virtuoso, amores, do que é uma família, amizade, trabalho, solidariedade, etc.

Histórias são muito eficazes para a construção do imaginário, especialmente histórias lidas e contadas por aqueles com quem há uma ligação afetiva insubstituível: os pais, irmãos ou cuidadores primários. Nas histórias as palavras são livres para ganharem roupas e contornos próprios não só da narrativa que está a ser lida como o autor a escreveu, mas também pela própria criança na sua imaginação. Aí forma-se uma triangulação importantíssima que conecta a criança à história e aos respetivos valores e referências apresentadas no texto, onde a relação com aquele que conta cria memórias afetivas, as quais funcionarão para que aquilo que vem do texto se cole de uma forma única à alma da criança.

Dispensa afirmar-se que essas histórias devem ser de qualidade, repletas das referências que queremos e desejamos ver construídas num ser humano virtuoso. É fundamental que as crianças estejam familiarizadas e se conectem com a clássica jornada do herói - onde vemos o caminho que o personagem, geralmente o principal, percorre até ao seu amadurecimento como herói: geralmente ele sai da zona de conforto com relutância a fim de aceitar uma vocação em prol de algo maior que ele, onde existe uma noção clara de uma luta do bem contra o mal (os vilões são sem dúvida vilões, sem ambiguidades a sua maldade, sedução e poder destruidor são evidentes). Na jornada do herói há também uma travessia por grandes provações e até mesmo falhas próprias do amadurecimento que ele ainda está a adquirir, mas rodeado de pessoas certas, amigos e mentores, avança no seu crescimento pessoal e na sua missão.

Hoje muitas vezes somos bombardeados por histórias (livros, filmes ou jogos) onde o herói é aquele que, em nome da liberdade de ouvir o seu coração diante de uma realidade onde o bem e o mal se confundem, são diluídos e ganham contornos próprios consoante os contextos (realativização), e cheio de certezas e de caráter já pronto (sem necessidade de amadurecimento), foge, contra tudo e todos (especialmente contra figuras de autoridade como a família), ao dever e às virtudes de proteção, sacrifício e serviço dos que estão à sua volta. A grande senda dele é tentar se encontrar na sua expressão pessoal e individualizada, onde o louvado e o importante é ele ser quem sente ser na sua subjetividade.

Na jornada do herói, o processo é o oposto, o sucesso está na redenção, onde temos a personagem a procurar fugir de ser quem é chamada a ser, mas a maturidade (muitas vezes imposta à força) leva-a a ser quem os outros precisam que ela seja para o bem maior, mesmo que para isso tenha que dar a sua vida. Nenhum de nós nasce pronto, todos precisamos de vários processos de redenção rumo à maturidade, não estamos a preparar e a dar referências às crianças se lhes dermos algo diferente disto.

Histórias contadas na infância, livros bons colocados nas mãos das crianças quando já sabem ler, e bons filmes repletos de boas referências são tudo tesouros mais valiosos que qualquer bem material que possamos dar aos nossos filhos, pois estaremos a forjar as suas almas e a prepará-los para interpretar e interagir com a realidade da vida que exigirá tantas vezes que eles sejam verdadeiros heróis.

- Joel Bueche Lopes

Joel Bueche Lopes

Joel Bueche Lopes

O Joel é casado com a Talita e tem quatro filhos. É pastor e professor, formado em Teologia e Psicologia, é membro da Direcção da Crescer com Amigos.

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