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Olhos abertos!

Olhos abertos!

21st March 2023

Foi em 2016, quando o projecto Crescer com Amigos iniciava em Portugal, que uma amiga me abordou acerca. O desafio era estar 1 hora por semana na escola, acompanhando uma criança durante um ano lectivo. Sim, quero muito!

Sempre gostei muito de conversar e de trabalhar com crianças e comecei a fazê-lo desde cedo na minha igreja e em acampamentos. O ambiente de escola, ou aquilo que dentro dela se pode criar, aprender e construir em conjunto, sempre me atraiu. Gosto da diversidade que ela envolve, das possibilidades. Começar como voluntária na minha escola primária foi a cereja no topo do bolo. Foi um privilégio voltar ao bairro e escola onde cresci.

Em pequena tive algumas dificuldades de socialização na escola, por ser muito tímida e até um pouco ingénua, achando que ser amigo era uma coisa natural. Não é. Nem todos querem ser nossos amigos e, sejamos honestos, também não desejamos nem conseguimos ser amigos de toda a gente. Ser amigo dá trabalho. Exige tempo, dedicação e uma fidelidade que precisamos buscar além de nós, uma vez que somos falhos. Também por isso, a amizade tem muito de graça e perdão e nos lembra que Amigo infalível só há um.

Ser voluntária no CCA tem sido uma experiência bonita, que me permitiu entrar na escola de uma forma diferente. Sou mãe de 3 rapazes, de 15, 17 e 19 anos. Sempre fui presente no ensino deles e isso incluiu também passar tempo na escola, colaborando e participando de várias maneiras, quando eram mais novos. Não via a coisa acontecer de outra forma. Fui me apercebendo do esforço dos professores, das coisas bonitas que podiam e eram feitas, mas também das fragilidades, que passam pela falta de verbas, condições, desinteresse de alguns, conteúdos extensos, pouco espaço para a diferença de ritmos e elevado número de alunos para poucos professores.

Recordo um missionário americano que passou uns dias em casa dos meus pais, quando eu era pequena. Tinha acolhido uma menina da China em sua casa e numa noite disse-nos o seguinte: “Ninguém pode mudar o mundo inteiro, mas todos podemos fazer o bem a uma criança.” A frase ficou comigo. A Crescer com Amigos é uma oportunidade de fazer isto acontecer. Dar os ouvidos a uma criança, ver a vida com os seus olhos, muitas vezes sofridos, aconselhar, ajudar, guiar e amparar o seu coração espremido por tanto, abrindo caminhos e dando asas a quem não sabe que as tem.

As crianças que acompanhei eram distintas umas das outras, mas todas com algo em comum: uma grande história e carga, apesar da tenra idade, falta de companhia e ausência de visão quanto ao futuro.

O primeiro menino que chegou até mim tinha 8 anos. Já tinha sido retirado à mãe duas vezes, vivido em lares e aguardava nova decisão do tribunal. A mãe gostava dele, mas não tinha ideia alguma de como cuidar bem. Amá-lo passava por lhe dar um pequeno-almoço na pastelaria todas as manhãs, sumo e bolo e, ocasionalmente, bater-lhe com um ferro. Sim, leram bem, um ferro. Os banhos eram semanais e o cheiro do menino preenchia qualquer sala onde se encontrasse. O N. só queria ser amado da maneira certa. A mãe, pedia desajeitadamente que lhe ensinassem a cuidar, coisa que nunca aprendera com os pais. Estive com o N. semanalmente, durante 2 anos. Gostava muito de histórias e da mãe. Penso nele muitas vezes.

O D. foi outro menino que acompanhei. O meu maior desafio, de todas as crianças que já passaram por mim, mesmo em outros contextos. Tinha perdido o pai uns meses antes, com quem tinha estado apenas 2 anos, após a mãe o ter abandonado. Foi viver num orfanato. O pai foi buscá-lo, mas adoeceu porco tempo depois. Passou alguns meses no hospital e morreu, deixando-o a viver com uma tia, uma senhora muito querida, já com alguma idade, que desejava que o sobrinho se sentisse amado, coisa que o menino não conseguia aprender a sentir, mesmo sendo o amor uma realidade. O comportamento do D. era imprevisível e variava tanto quanto o seu humor. Na mesma hora passava dos abraços e doçura à agressividade inimaginável. Tinha cara de rebuçado, mas raramente derretia.

Quero ainda falar-vos do L., o menino com o sorriso mais doce deste mundo. As dificuldades de aprendizagem que tinha eram gigantes e pareciam limitar todo o seu dia. A morosidade nos diagnósticos e a falta de ajuda profissional, juntamente com uma família que não queria saber eram frustrantes e deixavam-me tantas vezes à beira da indignação. Salvá-lo da sala de aula, onde apenas permanecia, sem conseguir acompanhar praticamente nada do que era dado, era um prazer. Calculo que para ele também, tendo em conta o sorriso que me lançava sempre que eu chegava e lhe esticava a mão. Já lhes disse que tinha o sorriso mais doce?

Como coach e coordenadora na Crescer com Amigos, tenho aprendido o seguinte:

Podemos começar e recomeçar sempre, mesmo que nos sintamos incapazes. Sentir isso é bom, faz-nos confiar menos em nós mesmos e depender mais do Deus que creio ser maior que eu e totalmente capaz.

As salas de aula estão cheias de crianças a gritar por atenção e amor. O que mais ouço da parte dos professores é: “Qualquer uma destas crianças poderia ser escolhida para ter acompanhamento!” ou “Não podem acompanhar mais ninguém?” A frase que mais ouço das crianças é: “Também posso ir?” Queria tanto levar todas comigo ou ter mais pessoas para lhes dar o acompanhamento que necessitam e desejam.

Ser voluntário é também uma oportunidade de escutar professores sobrecarregados, dando ânimo e encorajando aqueles que se importam. É alcançar famílias e ver para além do nosso mundo. Conhecer outras lutas, abraçar histórias, levar graça.

É perceber que não somos só nós a ajudar a criança. O contacto com ela muda-nos. Ser voluntária ensinou-me a ser mais atenta, paciente e grata. E, como coordenadora, uma das maiores alegrias é ver isso a acontecer na vida dos coachs que acompanho. A alegria e emoção que lhes presencio é preciosa e enche-me de alegria. Mesmo.

A imaginação floresce no solo mais desolado. Vi muitas crianças voarem, apenas porque acharam um amigo. Alguém que acreditou que poderiam ser mais do que o bairro ou a família onde viviam. A vida é mais leve quando cresces com alguém que te oferece esperança. Porque todos precisamos de ver o horizonte de vez em quando.

- Rute Carla Xavier

Rute Carla Nunes Xavier

Rute Carla Nunes Xavier

A Rute é casada com o Timóteo há 25 anos e é mãe do Samuel, do Jónatas e do Marcos. É coordenadora voluntária no CCA e gosta muito de ler, escrever, andar a pé e fotografar.

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